quarta-feira, 10 de julho de 2013

Preguiça Poética

Como estou sem nenhuma disposição para escrever, principalmente poesia depois que reli Castro Alves, e para não deixar meus poucos leitores na mão, vou postar umas crônicas.


CALÇADA DA FAMA

Estou na terceira ou quarta idade pagando um carnet da Genésio Morra Fácil e nestas condições, se deixei de bater ponto no banco, passei a bater no posto de saúde. Vou quase todo dia santo e especialmente às segundas-feiras quando as doenças tiveram três longos dias para fazer a festa. Como tenho que ir cedinho para entrar na fila, ao passar na última esquina antes do posto sempre tem frente ao bar um bom número de alcoólatras a esperar pela abertura da “farmácia”. Chova ou faça sol eles também batem seu ponto e estão sempre lá. Conseguem não sei onde umas cadeiras, e quando estas são insuficientes, encostam-se nas paredes, ou sentam mesmo no chão. O fato é que estão sempre ali e aí o pessoal não perdoou, virou Calçada da Fama.
Até que tem uns cirróticos bem simpáticos e vez ou outra eu paro e compro algo pra eles ou dou algum dinheiro pra birita. Certa vez um me pediu um maço de cigarros e fui ao outro bar, em frente, para comprar. Vi uns pastéis quentinhos e bem apetitosos e comprei um para ele, mas de sacanagem, na hora da entrega, escondi o cigarro e ofereci o pitel. O camarada criou o maior caso e eu abri a mão onde estava o cigarro. Ele ficou tão sem graça que até hoje tenho dor na consciência da maldade que fiz.
Gelson, perna de passarinho, frequenta pouco a Calçada mas em compensação seu Nésio tem que expulsar ele do balcão quase todo dia e em alguns ele sai no carrinho de mão. Ele tem conta corrente no botequim mas as anotações estão apenas na coluna de débito. Bruno todotorto, ainda não está na Calçada porque só bebe simidão, pagar que é bom, necas, e olha que é aposentado e recebe um bom trocado.
Bebo Ananias tá sempre na exposição mas tem lá suas razões: é compositor e vive cantando seu maior sucesso, Maria Rosa, do qual só me lembro o estribilho: Maria Rosa deu um peiiiiido na ladeira... e lá de cima só se ouvia a peidadeira.
Às vezes, lá pela madrugada ele implica com alguns políticos ou vizinhos, com a mesma gritaria com que canta seu estribilho e numa dessas ele implicou com Gelson que dormia dentro de uns carros velhos, no meio da rua. Ameaçou botar no carro um casal de pulgas e deve ter cumprido a ameaça já que em pouco tempo Gelson abandonou os carros e anda com as pernas bastante roídas.
Chico, filho de seu Nésio, não bebe em casa pois o pai não serve. Um vez encontrei-o na feira e perguntei se ele levaria um buquê de flores para a irmã dele, Angelita, minha vítima favorita no Posto de Saúde. Ele, na maior boa vontade, saiu rapidinho com as flores e eu dei-lhe o trocado para tomar a de lei, mas mesmo assim as flores ainda estão a caminho. Não sei se valeram uma ou mesmo duas cachaças, e ele sempre que me vê afirma que entregou as flores, só não diz a quem.
Machadinho, quando era o feliz proprietário de um bar, tinha um lema: se sobrar nós vende. Já o Romário, frequentador não tão assíduo da nossa Calçada, tem um lema diferente: A gente não vende tudo porque se não vai pagar mais caro no bar famoso. Como ele só negocia aos domingos, na feira livre, na segunda o patrão é dispensado de lhe ver a cara. Feira normalmente acaba cedo, principalmente pra ele que não pode vender a mercadoria toda, então o restante do dia e, creio, às vezes algumas noites, são dedicados ao consumo doméstico. Também não sei se é quando sobra muito ou pouco, mas o fato é que algumas vezes encontro ele bem cedo, desesperado a bater na porta de um outro botequim, (pois a Calçada, sendo nobre, tem horário para abrir) perturbando o dono pra servir a primeira da semana antes de raiar o sol. Lembrei-me do Castanha, que bem moço mas já inveterado, na segunda ele sempre esfriava o café e, todo se tremendo, punha álcool dentro e ingeria. Detalhe: ele era envernizador e o álcool era o sujo mesmo, de fazer verniz. Morreu cedo, verniz não deve ser muito bom pro fígado.
Antes que eu esqueça devo dizer, para quem por acaso não saiba, que também sou alcoólatra, meio sistemático, é certo, mas mesmo assim sou, e todo dia por volta das dez da manhã, lá estou eu começando o almoço e sofregamente bebendo meus limãozinhos. Por isso tenho que descrever com muito carinho os meus companheiros de vício. E se com carinho também dou os trocados pra bebida, alguns maldosos me chamam de mata bêbado pois vez ou outra um engole um gole a mais e papoca, como se diz no Ceará: com linha e tudo.
Mas não faz mal, o Genésio é logo na outra esquina e seu nome deve ser derivado de generoso, pois deste pessoal ele cuida, mesmo sem carnê.
Chega, tá dando dez horas e eu tenho que cuidar da vida pois a morte é certa, com ou sem os pagamentos à funerária. Vou tomar a minha, e tenho que sair um pouco antes pois sendo sábado, e ainda com a mulher em casa, sou obrigado a tomar banho. Saco, já tou atrasado, essa merda de bater ponto!
Março de 2011.

2 comentários:

  1. Gostei demais...Onde acha tanta expiração ? Logo cedo uma ótima leitura.

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    1. Somente o seu contato já merece o escrito. Fico muito feliz quando consigo agradar a belas mulheres, como você. Um beijo carinhoso na ponta do nariz.

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