segunda-feira, 10 de novembro de 2014

TENTANDO SOBREVIVER

EU NÃO TINHA A INTENÇÃO DE PUBLICAR ESTE TEXTO NO BLOG, MAS MUDEI DE IDEIA PORQUE ALGUNS ME PERGUNTARAM SOBRE A MINHA LONGA BRIGA COM A CAIXA ECONÔMICA, PARA O QUE ESTOU ESPERANDO (PEDRO PEDREIRO) UM FINAL FELIZ PARA OS PRÓXIMOS DIAS. COMO AINDA SOU MUITO ANSIOSO E ESSA ESPERA TEM SE ETERNIZADO, RESOLVI POSTAR AINDA SEM O FINAL.

Distintos Períodos de Escravidão

Certa vez minha psicoterapeuta mandou que eu escrevesse sobre um período que sempre eu falava como sendo o único na carreira profissional que tinha valido a pena, que o trabalho realmente tinha produzido algo. Não consegui, o tempo em referência foi muito curto, tanto que o batizei de Hiato Profissional, e o restante da vida tentou dominar o texto. Digo tentou porque acabei largando aquele estreito caminho e abracei outros que me pareceram mais largos. Em invectivas contra as guerras, exploração econômica e outras mazelas criadas por e para o homem, enfim, um texto bem depressivo, segundo um ou outro que teve a coragem e a paciência de ler.
Hoje, já decorrido quase um ano, volto ao tema tentando juntar os três períodos (ou separá-los, dependendo da ótica) que considero distintos nos 25 anos em que servi a um só e poderoso senhor: o dinheiro. A estes três segmentos de tempo, assim como D’Artagnan aos mosqueteiros, junto um quarto, anterior e extenso período de 23 anos em que o senhor era irmão bastardo, e tão ou mais poderoso que o outro: a fome. Como não escrevo com o propósito de agradar a alguém, até porque não sei se terei algum leitor, descreverei algumas passagens destes difíceis tempos sem o temor de ser novamente depressivo.
Nasci no meio da roça braba, sem assistência de qualquer espécie, de parto “natural”, que eu diria espontâneo, pois era feito pela própria parturiente. Aqui eu engulo uns cinco ou seis anos e só lembro da mudança para Fortaleza, e a relação entre os valores pagos aos que efetuaram a mesma. Para chegar à Capital, cerca de 70km, pagamos x cruzeiros e dali até o bairro onde passamos a morar pagamos uns 50% a mais, sendo a distância de 3km e percorrida em uma carroça.
Neste bairro passei a ser perseguido por uma faminta e grandiosa porca. Ela não podia me ver que disparava atrás, não lembro se chegou a me morder ou se só queria namorar. Tentando fugir da fome e da porca fui morar com uns parentes no semi-árido, que logo virou deserto durante três anos de seca. Com uns sete ou oito anos de idade abracei a primeira das muitas ruins profissões que tive – vendedor de água – quase lama, buscada a cerca de dois quilômetros e vendida por qualquer tostão já que os sedentos eram também famintos. Salvo pelo gongo do irmão Cocão, na época ainda José Chagas, sobraram-me de herança do período uma bela cicatriz de mordida de jumento e um olho cego que nem posso orgulhar-me, como Camões, de que tenha sido um mouro na guerra, já que foi um amigo e em uma inocente brincadeira de criança. Irrelevante dizer que chorei uns três dias com o olho furado e não lembro o quanto doeu a mordida. Ficaram os traumas, físicos e psicológicos. Da época me recordo ainda da alimentação que era quase ou todo dia um belo cardápio de feijão de corda, bem velho mas também bem temperado – com gorgulho. Vinha de quebra um outro tempero, Gesarol 33, um pesticida usado no feijão, que fedia tanto ou mais que o próprio gorgulho. Recentemente, quase 50 anos depois, fui a Fortaleza e vi o miserável do feijão, novinho, mas já todo furado, e comprei um quilo para mostrar pra meu filho, mas também na esperança que fosse comestível, pois parecia bem diferente do antigo. Não era.
Mais um Severino, retirante do sertão nordestino, que bem poderia ser confundido com o descrito por João Cabral em seu famoso poema, depois musicado e transformado em peça teatral por Chico Buarque. Benditos sejam os que conseguem ver ou transformar em beleza e arte tanta miséria.
Da escola, à qual já cheguei com 12 anos de idade, vale recordar a primeira prova. Na época era semestral e na divulgação dos resultados a professora lia os nomes dos que passavam, de trás pra frente. Eu comecei a suar frio com medo da surra por ser reprovado pois meu nome não aparecia, e quando já me resignara, tomo um susto – primeiro lugar. Era meio que superdotado de memória e não sabia, tudo que era dito durante o semestre, ou o que lia na véspera da prova, eu decorava. Posteriormente este dom foi se perdendo por conta do descuido e do álcool. O período D’artagnan ainda se arrastou por mais onze anos com algumas peripécias aqui e ali mas que não valem a pena ser narradas. Tempo de escravidão da fome mas que eu pensava ser livre. Africano, antes dos navios negreiros.
Sobrevivente, aos 23 anos passo em concurso da Caixa Econômica Federal e, todo eufórico, achei que ganhara a alforria, ou até, o que me parecia à época, um verdadeiro paraíso. Belo engano. Passei a ter o pão de cada dia, o que era um progresso e tanto, mas o navio negreiro, cheio de luzes e lantejoulas, me capturara. Passei a ser escravo dos relógios de pulso e de ponto, subserviente a todo tipo de ordem, muitas delas estúpidas, mas que deveriam ser aceitas pra não perder o já citado pão. Condenado a executar os repetitivos e neurotizantes serviços bancários por um longo tempo. E não nos iludamos, mudar de emprego muito dificilmente mudaria esta relação. Teria que mudar de lado, deixar de ser servo para ser o senhor, de dominado para dominador, o que também não me seduzia muito, apesar de, em meus sonhos eu imaginar ser o que hoje considero o pior destes senhores, o banqueiro. Não tinha talento, dinheiro, força ou imaginação para transformar o sonho, o que eu considerava impossível e talvez fosse mesmo, pelo menos para mim. Apesar de muitos alardearem que, em se querendo, nada é impossível, penso que é, pois as pessoas são limitadas, são bem poucos os super-homens que existem por aí, e estes ainda têm, a aparar suas asas, a criptonita verde. Eu não tenho os superpoderes mas tenho a criptonita que, de qualquer cor, me faz mal. Chama-se depressão e fixou moradia dentro da cachola; corre uma ação de despejo na justiça incomum, especializada em coisas da cuca, mas esta faz jus a fama que tem de lenta e me enrola há mais de quinze anos, mesmo com audiências semanais nas cortes e divãs de suas excelências, os analistas, psiquiatras e outros menos cotados curadores da mente.
Já no banco entrei para a faculdade e foram quatro anos e meio de muita correria. Tinha que fazer milagres, pois trabalhava oito horas durante o dia e as aulas eram no mesmo horário. Deste tempo carrego o dom da ubiquidade. Terminei extenuado, com o aprendizado muito reduzido e que, praticamente não me serviu de nada.
Tentando diminuir as frustrações do trabalho montei uma empresa que rapidamente progrediu e com isso me veio uma agradável surpresa: como eu não dependia mais do banco e quando me aborreciam eu os xingava, os chefetes não se metiam comigo, me largavam num canto qualquer com o serviço e eu o executava a contento. Foi o melhor período de minha vida, dentro e fora do serviço, pra ser mais radical eu diria que foi o único em que realmente vivi. Durou um pouco mais de dez anos e ruiu com a invasão dos turcos otomanos.
Falando de turcos e de chefetes tem uma estorinha rápida envolvendo os dois. No último local onde me largaram funcionavam dois setores e os senhores presidentes, além de muito chatos, não se bicavam. Um dia tinha um pessoal consertando o forro da sala e um destes mandachuvas subiu junto e foi fiscalizar o trabalho, mesmo não sendo na seção dele. O outro ficou embaixo rogando praga para o primeiro cair. E não é que caiu mesmo. Pra completar, como não terminaram o serviço, chamaram um vigilante pra trabalhar à noite e lá pela madrugada este acorda com um barulhão. Assustado, mandou bala pra tudo que é lado até acabar a munição, quando então se trancou numa sala e pediu reforço que tão logo chegou vasculhou tudo e como não viu ninguém, subiu no forro pra fazer a varredura completa. Parece que as pragas do turco (apelido do chato numero dois) ainda estavam em vigor, pois o reforço também caiu. Claro o dia, descobrimos que o invasor era uma pilha de caixas que, mal arrumadas, tinham caído e agora estavam todas baleadas. A realidade, às vezes, supera a ficção. Pastelão dirigido por Gugu Liberato - parêntesis fechado, voltemos ao original.
Assim como muitos dirigentes romanos não tinham aptidão pra ser imperadores eu também não tinha para ser empresário – caiu a Bastilha. Fali e entrei em um segundo período que só não era igual ao primeiro porque trazia intrínsecas as condições que me proporcionaram o terceiro, o Hiato. É que aqueles que se sentiram sem forças em relação a mim durante a minha curta vida de senhor/dono/patrão, viraram novamente He-Man e tinham a força. Por minha vez nem sempre lembrava que tinham revogado a Lei Áurea e aqui e ali brigava com meus capatazes e capitães do mato. Numa dessas fui mandado pro tronco. Estava há mais de 20 anos na parte administrativa, no apoio, na retaguarda (ah! este é o termo) e fui mandado pra linha de frente, pra guerra, para uma agência. O meu Vietnã chamava-se Agência Vila Rubim, escolhida a dedo por ser considerada a mais ruim de trabalhar, era o tronco de verdade.
Não deu outra, em pouco tempo pensei que tavam filmando dentro da agência. Guarda no chão, porrada na cabeça, revólver na nuca. Os dois últimos também sobraram pra mim que portava uma camisa bonita e fui confundido com o Gerente. Ao negar a função levei a porrada e foi a promoção mais rápida que vi na vida, foi mesmo na porrada. Desculpe-me fictício leitor, não pude furtar-me ao infame trocadilho.
Se a depressão vinha sendo contida sem muito esforço, com o choque ela rebelou-se e começou a dar trabalho. Passei a ter síndrome de pânico, tirei seguidas licenças pra tratamento de saúde, não podia ver a Agência, dormia mal ou não dormia. Virei morto-vivo para a empresa vagando em múltiplas seções internas, onde ninguém me queria, e aí os chefetes tinham razão. “A maior lição de vida é que, às vezes, até os tolos têm razão” (Winston Churchil). Fui parar no arquivo morto, certamente lá era o lugar adequado ao meu estado, posto que não existia o setor cemitério.
Ameaçado de voltar à bendita Agência, me aparece a oferta de ir para São Paulo e ainda receber um bom trocado (a estas alturas eu já estava falidão, até como pessoa física), e como não fizeram restrições a malucos ou mortos-vivos, aceitei na hora. Fui!!! “Era o começo do fim, ou era o fim” (Geraldo Azevedo). De lambuja, a grana me foi roubada por um empregado.
Na cidade que não pode parar me mandaram aprender com um paradão, lerdo mesmo, e eu na minha ansiedade, enlouqueci. O serviço era bem burocrático, muito normatizado, e eu não progredia, principalmente por não suportar os métodos do instrutor. Em três dias o gerente me chamou e disse que eu não estava produzindo e, após expor minhas razões ele disse que em meu lugar teria procurado o balcão ao lado e tentado fazer outras coisas. Eu respondi que foi exatamente isso que fiz mas dali pra frente resolvi aprender o serviço a mim designado, sozinho. E consegui! Passei a atender isoladamente e de forma bem satisfatória.
Em poucos dias o mesmo Gerente começa a fazer pressão para que vendêssemos uns micos que a Caixa inventara, no afã de equiparar-se aos lucrativos bancos privados. Todos os dias a bela secretária estagiária passava com uma lista anotando quem vendera ou não um papel podre. De tanto insucesso, ele, que assim não ganhava suas comissões, resolveu apelar para uma premiação extra pra quem vendesse mais. E o prêmio era em dias de folga, o que seduzia bastante pois quase todos os empregados eram “estrangeiros”, e passar um dia ou dois a mais com a família era muito tentador. Resolvi aderir, e utilizando a experiência adquirida em minha falecida empresa de vendas de carros, passei a empurrar nos clientes, seguros diversos, bilhetes de loteria, poupança premiada, previdência privada e até papel higiênico usado, se preciso fosse. Resultado: ganhei, em primeiro ou segundo lugar, todas as folgas, e junto, algumas inimizades que foram bem úteis em um futuro próximo.
Aqui começa o já citado Hiato Profissional. Trabalhando no setor de habitação e lidando com meu público favorito, os carentes, vi que a Empresa oferecia muitas formas de resolver as pendências existente, que também eram muitas. Especializei-me nestas pendências, li bastante sobre o que era permitido ou não e passei a resolvê-las melhor que os outros, chegando a gerar filas exclusivas para o meu atendimento, o que acirrava novamente o ciúme e as birras de alguns colegas que não conseguiam fazer igual. Reclamações com a nova Gerente, que me chamou a atenção, e eu, achando que estava certo e já em estado eufórico/depressivo, nem liguei. Finalmente estava trabalhando e produzindo de verdade. De tão eufórico, utilizei todas as normas e quebrei algumas para resolver as coisas em favor de meu público. No item quebra de normas cometi uma grave e estou pagando até hoje. Os recém-adquiridos inimigos montaram em mim. C’est fini. Foi mesmo, fui demitido, depois aposentado por invalidez já que a depressão só piorava, e como perdi minha aposentadoria complementar estou, não em total, mas em meia miséria. Pelo menos mudei de patrão, sou funcionário de Deus e dizem que ele cobra sim, mas só depois que o defunto é enterrado e aí, sabe, depressivo não liga muito pra isso não. Se Ele cobrar caro depois eu mando um e-mail explicando, para que outros não Lhe fiquem devendo.
Muita gente afirma: minha vida dá um livro. A minha não deu nem dará certamente; apenas estas poucas e insípidas páginas. A inveja que tenho hoje é de algo que me parece tão distante quanto o sonho de ser banqueiro, embora aparentemente mais fácil e bem mais estranho: um epitáfio. Do milionário americano Malcolm Forbes “enquanto estava vivo, viveu”.

Stenio, nos últimos dias, epa, de agosto, 2007.