domingo, 13 de julho de 2014

SAUDADES

O BOM, PARA QUEM NÃO TRABALHA MAIS, COMO EU, É QUE A SEGUNDA JÁ NÃO É TÃO CHATA, FICA IGUAL AO DOMINGO. ENTÃO EM HOMENAGEM AO DOMINGO/SEGUNDA E AO NÃO TRABALHAR VOU RECORDAR DO TEMPO QUE EU FAZIA ALGUMA COISA.


PROFISSÕES


“O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias”. João Cabral de Melo Neto.

Por ter nascido muito pobre logo cedo tive que abraçar algumas profissões e muitas delas não foram das melhores.
Minha mãe contava que antes dos cinco anos eu era intermediário de compra e venda. Comprava fiado na esquina e depois perturbava para me darem o dinheiro para eu pagar. Como as recordações não são minhas não sei se já cobrava comissão.
A primeira de que me lembro foi a de vendedor de água. Até que deveria ser um bom negócio pois era no sertão nordestino em época de longa seca. Tinha uns pequenos problemas como a distância, uns dois quilômetros; a água, que de tão barrenta parecia lama; o meio de transporte, lombo de burro, (o que vos fala); e o pior, os sedentos eram também famintos, e nem sempre tinham meia pataca para me pagar. Acrescente-se a minha idade, na época: uns sete, oito anos, no máximo.
Ainda no semi-árido e neste mesmo período de seca, fui mineiro, catava umas pedrinhas escuras e brilhosas que depois fui informado que poderia ser rutila. A encrenca era que a tal pedrinha aparecia muito pouco e somente no período mais quente, talvez por se acentuar o brilho.
Ainda no sertão mas já em um outro período, lembro de um tempo em que fui tropeiro de burro, conduzindo terra para as barragens de açude. Não era uma profissão ruim exceto pelo pagamento que era feito com um tal de sunguelo, que depois era trocado por feijão furado e rapadura. Em seguida fui apanhador de feijão, milho ou algodão e este último demorava bastante para juntar um quilo, que era remunerado com uns dez centavos, talvez menos. Molhar sairia mais caro, pela falta d’água, e se colocasse areia ou pedra só passava uma vez, depois perdia o emprego. Deste tempo lembro ainda que era tão quente que a gente ia de madrugada para o roçado e voltava umas nove ou dez horas da manhã, quando já não conseguia permanecer no sol. A água que se bebia durante o trabalho era tirada da melancia verde e não matava a sede pois era também muito quente.
Até aí eu não frequentara a escola regular, que só iniciei aos doze anos, já em Fortaleza, mas aprendera a ler.
Na capitá fui carregador de feira, vendedor de bala, de banana e até de tapioca, aqui no Sul conhecida como beiju. Como vendia muito pouco não esquentava lugar. Uma venda que durou um pouco mais foi a de pão, e nesta o horário era mais ou menos o mesmo do roçado, da madrugada até as nove, mas a diferença é que agora eu já ganhava um trocado até bom. Acabou porque meu irmão, que era o mestre padeiro, sumiu pras bandas do Piauí e levou o dinheiro de pagar a padaria. Bom também nesta profissão é que eu não precisaria pagar academia pois andava de oito a dez km com o cesto nas costas, cheio ou vazio. Antes dessa, veio uma outra também interessante pelo inusitado: carregador e batedor de caixão de defunto, e defunto porco (porco mesmo). Explico: Eu era empregado mirim do matador de porco e depois de vender a carne ele saía para vender o sarapatel e como o moleque, apesar de bem forte, não queria levar o peso, lá ia eu com uns quinze quilos na cabeça, na frente dele, batendo no caixão. Pleco, pleco, pleco. Cada meio quilo vendido era como tomar um Dorflex.
E o miserável logo atrás, aos berros: buiiiiiií de porco toucim e banha! O buí era a forma mais fácil de ele conseguir falar sarrabulho, como é conhecido lá o conjunto de miúdos do bicho sujo. Um outro irmão meu (tínhamos uma boa safra) certa vez foi preparar um pouco aqui em casa e não lavou direito. Como reclamamos, ele argumentou: o porco era limpo! Então tá bom.
Fui vendedor em duas mercearias, uma quebrou e na outra o proprietário não me pagou nada, certamente achou que eu roubava, mas o que eu catava mesmo era uns pedacinhos de queijo, que comia escondido. Foi um pagamento melhor que dinheiro. Por linhas tortas, ele foi justo.
Arranjei um emprego público mas em oito semanas acabou meu mandato, ou melhor, do político, e eu, bem, eu como já estava acostumado, fui pra rua. Ligeirinho no serviço público.
Fui trabalhar em uma fábrica de móveis e de enrolar os outros. Em cada três vendas o sujeito deixava uma sem entregar ou demorava pelo menos um ano, já tendo recebido a metade ou mais do valor. Ele vivia se escondendo dos clientes e ainda assim fiquei lá uns três anos embora não tenha aprendido a profissão de enrolador. Será este termo por demais eufemista?
Mas, a meu modo, passei também a enrolar. Meu irmão (mais um) montou uma oficina de reforma de móveis e eu era o procurador de serviços e, como era diferente dos demais e precisava comer, eu executava alguns destes serviços com toda a inabilidade que sempre tive em trabalhos manuais. Profissão: bombeiro enganador. Pode até soar, mas não é encanador, é enganador mesmo. Explicando novamente: bombeiro, no Ceará é o operário que faz tudo mal feito e enganador é o superlativo do termo. Só pra se ter uma ideia das minhas “mágicas” soldava cadeira de ferro (cano) com um cabo de vassoura e cola. Com esta enrolação sustentei a casa durante uns seis anos.
No período do último ano fiz hora extra: estudei todas as noites e aos domingos, durante o dia. Foi o que me salvou a pele pois no colégio não tinha aprendido quase nada e quando fui fazer meu único concurso público, passei entre os primeiros. Maravilha, iria ser bancário num grande banco público! O que descobri depois é que, neste ramo os serviços, repetitivos e neurotizantes, fazem com que um bom percentual ao se aposentar esteja meio maluco ou bem depressivo, que é o meu caso. Esta profissão tem um epíteto bem menos nobre: auxiliar de ladrão. É uma atividade tão insossa que pouco teria a relatar no longo período em que a exerci.
Me aposentei meio na porrada, literal e figurativamente falando. Literal porque levei umas porradas de um assaltante dentro do banco, e eu que já apresentava um quadro depressivo, piorei bastante. Comecei a fazer bobagens dentro do serviço até que fui expulso e aí tive que apelar para a porrada figurativa para conseguir a aposentadoria, pois os analistas achavam que eu não tinha trabalhado ainda o suficiente. Devem ter razão, eu é que já nasci errado. Ou como diz outro irmão (desta vez adotivo): todo torto!
Com a aposentadoria pensei em realizar um antigo sonho: ir à Europa, visitar Paris, subir na Torre Eiffel, passear às margens do Sena, tomar um porre no Quartier Latim, ver as raridades do Louvre. Isto tudo, toda a mágica, teria um nome: Fundo de Garantia. Até agora o que rendeu foi dois passarinhos comprados por meu filho (raspa de tacho), e uma nova profissão que ele me arranjou: espantalho. Como tem um gavião nas redondezas e eu é que não saio de casa, voltei ao roçado e a função deve ser tão ruim quanto as outras daquele tempo. É mole ou quer mais?

Stenio, novembro de 2009.

PS: Meu “raspinha” (14 anos, 1,80m) sempre me recorda de uma outra que, apesar de não ser tão bizarra, era bem traumatizante para uma criança de uns oito ou nove anos: caçador noturno de cascavel. Não citei para não dramatizar demais o texto que alguns já acham pesado.

S.


quarta-feira, 2 de julho de 2014

VIDA SEVERINA


ATUALMENTE TENHO O PÃO DE CADA DIA MAIS OU MENOS ASSEGURADO (SE O INSS NÃO FALIR...), MAS JÁ PASSEI ESSES PEQUENOS APERTOS.
COMO APARECERAM MAIS DOIS OU TRÊS SEGUIDORES NO BLOG, E TAMBÉM TEM HAVIDO MAIS VISITAS POR CAUSA DOS AMIGOS DA CAIXA, REENCONTRADOS, ESTOU POSTANDO, MESMO JÁ TENDO FEITO ISSO NO FACEBOOK.

Mais Encomenda

Na minha infância fiquei um período afastado de minha família, deve ter sido dos seis até os dez anos de idade, e neste tempo morei no interior, onde conseguia o feijão com farinha, o que, na casa da minha mãe, solteira, sem trabalho fixo e com um monte de filhos, era bem mais difícil.
Fui resgatado, quando nem mais queria, pelo irmão Cocão, na época ainda conhecido por José Chagas, e fui morar na Bela Vista, numa casa de quatro cômodos pra dez ou mais pessoas. Nós éramos em sete, porque dois casaram e um outro morava com parentes no interior mas para compensar estes minha mãe logo recebeu o sobrinho Aloisio, que foi para a Capital com o intuito de estudar, e quase sempre tínhamos junto um ou mais dos irmãos dela, e mais um agregado, o Cobra.
Como normalmente ninguém conseguia emprego, vivia aquele monte de homens dentro de casa, fazendo bagunça, jogando baralho escondido da mãe, ou bola no meio da rua, e nesta última hipótese tinha também que vigiar o ônibus pois o irmão mais velho batia nos outros, se os encontrasse jogando bola.
Um outro irmão, já adulto, também conseguiu algum serviço, além do Aloisio e o Cobra, e logo nós estávamos tomando o dinheiro deste último no batidim (ou relancim, espécie de jogo de baralho). O Aloisio, muito comportado, não jogava, mas mesmo assim o salário dele só dava pra pagar o colégio e o ônibus. Diz ele que jogava bola, mas devia ser no meu lado cego.
Diante de um panorama desses, a gente tinha algum divertimento sim, mas quase sempre era à custa da miséria de um ou de outro, pois era o que permeava o nosso dia a dia.
Minha mãe já trabalhava, mas como doméstica, e ainda de gente quase tão pobre quanto nós, recebia meio salário mínimo, ou menos. Assim, quase sempre tínhamos que vender o almoço para pagar o jantar e neste sufoco o Aloisio sofria mais que os outros, com os dois turnos de trabalho e a escola noturna. Minha mãe, tentando protegê-lo, fazia um prato e escondia, pra gente não comer, mas como na casa não tinha muitos esconderijos, e com tantos famintos procurando, invariavelmente, ele ficava sem. Um irmão mais sacana começou a deixar o prato coberto e vazio para Aloisio descobrir e não ter nada dentro. Depois de uns três dias caindo no truque, ele começou a levantar o prato para deduzir, pelo peso, se tinha comida ou não. O sacana logo viu que não tava tendo mais graça e passou a botar areia, para ficar pesado e rir mais ainda, quando o faminto sentisse o peso e achasse que tinha comida.
A casa era infestada de ratos e o mesmo irmão mais sacana, armava a ratoeira com a isca de goiaba, já que do queijo, claro, não tínhamos nem o cheiro. Tio Maneo, também muito espirituoso, desarmou a ratoeira com todo o barulho e ainda imitou o ruído do rato imprensado. Rapidamente o Antônio correu pro local falando: ande bichim, coma goiaba! Foi um sacana sacaneando o outro, e todos nós rindo.
Já adulto, certa vez fui em uma fazendola da qual fora coproprietário e vendi minha parte para o outro sócio. A esposa dele pediu para eu fazer um poema sobre a fazenda, e eu disse que ia pensar, mas estava decidido a não fazer porque eu só via ali, miséria, exploração do homem pelo homem, e até trabalho infantil, utilizado pelos pais dos menores. Ao chegar na cidade ela mostrou uma montanha e disse que era linda, e também pediu uma poesia. Eu olhei e o que vi foi uma favela subindo morro acima e também pensei: porra, eu não sou João Cabral (de Mello Neto), para transformar miséria em beleza. Depois de alguns dias acabei juntando os dois pedidos e atendi à pedinte, todavia não mandei para ela a encomenda, por motivos óbvios.
Desta vez também eu estava decidido a não escrever para não expor misérias, e quando iniciei pensei também em não mandar, mas como agora eu conheço mais o pidão e sei que aguenta: taí.
Como um prato cheio de areia, anexo, abaixo, o poema.



MODERNIDADE


Sol a pino, mulheres (ocidentais) de burca
Suando em bicas a colher abóboras.
Crianças dão sal ao gado, embalam verduras
Trabalho no campo: exaustivo, inglório, ilegal.

Um ninho de passarinhos, com fugas e cantos
Ao lado da casa “sede”, nem sequer é visto
Não há tempo para deleites, romantismos.
A sobrevivência é que lhes dita o dia a dia.

E o trabalho infantil, e a extorsão das mulheres
Vai parar na minha mesa, normalmente farta
E na de gente ainda mais exploradora.
Triste ser humano que seus escravos perpetua.

Os burros de carga coexistem com avançadas
Tecnologias, e estas que a bem poucos beneficia.
Bela musa me diz, como se pode escrever poesia?
Preciso que um bom médium me evoque

De Castro Alves o espírito pra escrever com alma
Sobre escravos modernos, que nem são africanos
E um encosto de João Cabral que me transmita
A fórmula mágica de dizer que a miséria é bela.

Mas a não muitos quilômetros, já na cidade grande
Mesmo que forçado, o povo pobre faz a poesia
Empurrado morro acima na bela montanha
Que desmorona em versos que à musa contraria.

E à noite, quando as luzes mais baixas e mais ricas
Sucumbem à imensidão de vaga-lumes
Me regozijo e, pra não dizer que não falei de flores
Vejo ao longe e bem alto uma via láctea. Belíssima!

Março, 2013