domingo, 21 de dezembro de 2014

DAMA (DONA) DA NOITE

UM TEXTO MAIS LONGO E ÚNICO MEU DE FICÇÃO. DIZEM QUE É UM CONTO.

Brilhante Dama

Aos primeiros alvores matinais ela rola na cama, lânguida e relaxada como se tivera uma linda noite de repousante sono, velado por querubins, após ter feito amor por longo tempo, mas não sabe se também com um anjo ou com o próprio deus. Grego. Inspirada talvez por estas divindades decide que será bem especial o belo dia anunciado pela réstia de sol que teima em se esgueirar por entre o cetim do cortinado. Será um dia completo e narcisistamente só seu. Completo sim, de sonhos, desejos, paixões, loucuras, poesias. Delibando-se previamente nas iguarias a ser vividas, alonga todo seu retilíneo corpo e calmamente deixa o leito, imaginando se ele a servirá melhor ainda, naquele mesmo dia. A intrusa réstia de sol já espalha sua claridade e com um leve ardor circula pelo belo corpo, ainda semidespido, e lhe anuncia o bom dia do astrorrei.
Hora da primeira refeição que já se encontra à mesa e nada fica a dever aos Palaces de Paris ou Nova Iorque. É, o dia realmente promete! Cada porção de alimento que vai à boca é mastigada e saboreada longamente e com muito vagar, quase que num ritual zen, em que não existissem tempo, obrigações, relógio. Aliás, o dela quebrou há poucos dias e ela jurou, como se preciso fosse, que não usaria outro. Providencial.
Será que o sol já cumpriu sua rotineira tarefa (o sol, este sim, tem obrigações) de colorir e aquecer águas e areias? Caminhando umas poucas centenas de metros é possível fiscalizar se o trabalho está sendo bem executado. Tão logo chega à praia deserta, ri interiormente ao pensar que o fiscal de ponto da grandiosa estrela é o seu diminuto, branco e bem cuidado pé, que com uma boa dose de sensualidade toca a tépida areia e imediatamente uma ruidosa e ciumenta onda quebra à sua frente e lhe vem, reverenda e mansa, beijar o escultural e atrevido pé.
Espalha pela areia seus muitos apetrechos de mulher e fica em dúvida se seu exigente corpo quer logo a água ou mais sol. Na dúvida, opta pelos dois e mergulha com a elegância de uma campeã olímpica. Em pouco tempo sai da água e preguiçosamente estende-se na toalha para curtir e ser curtida pelo agradável calor.
Sua tarde será dedicada a reposição de forças para o que ela idealizou como o melhor de seu dia. Dormirá após o almoço.
E quando a noite finalmente abre seu manto iluminado por milhões de estrelas, seus olhos brilham como aquelas e maliciosamente ela decide que vai se vestir de noite, seu manto negro será de seda opaca e suas estrelas serão grãos da areia matutina agora transformados em vidro, por fustigante calor mas não mais do sol. Serão miçangas tão reluzentes como se fossem rubis. Ela vai ser a verdadeira dama da noite – nobre dama - tão nobre que suas miçangas mais coloridas parecem mesmo rubis, e as mais pálidas parecem estrelas de uma constelação longínqua, vistas na noite escura. E todos são dela, rubis, estrelas, noite, constelação, miçangas. Ela é a dona do mundo. Da lua não é, pois esta não veio hoje ao firmamento. Certamente não quis tirar uma fatia sequer do esplendor da brilhante dama, ou quem sabe ficou temerosa de que esta brilhasse mais que ela.
Com este sentimento circula sozinha por elegantes bares e boates da moda. Não sabe se procura algo, ou se só quer exibir-se. Beberica em cada um dos lugares e pela madrugada decide voltar, pois não quer ver o sol romper a aurora e decretar o fim de sua noite, posto que em sua imaginação não haverá um fim para este dia/noite que está e haverá de ser tão perfeito.
Um pouquinho alta, caminha pelas ruas e encontra um jovem poeta a recitar versos à noite e seus distantes astros. Parece que aquele jovem teve também seu dia especial e a chama com sua poesia para juntos participarem do supremo ápice – o ato sexual – e aí ela descobre o que ainda lhe faltava. Rapidamente modifica o seu plano solitário e juntos caminham em busca da alcova adrede preparada. Das preliminares ao gozo decorre um longo tempo, quando então dormem embevecidos em cansaço e êxtase. Ao acordar pela manhã, já não tão cedo e, provavelmente pelo adiantado da hora, não encontra ao seu lado o anjo do prazer que lhe fez companhia. Sente-se confusa, não sabe se viveu ou sonhou aquele dia. O sol parece se aperceber disso, pois logo vem acariciar o mesmo pé que lhe aprovou o trabalho. Uma suave brisa sussurra ao seu ouvido: ainda que tenha sido um sonho, ele hoje pode ser realidade. E a dama, despindo-se da lingerie, também negra, começa a pensar em fazer ou sonhar tudo de novo, mas será que um dia tão perfeito se vive mais de uma vez? Ou por ser tão perfeito ele só é mesmo possível em sonhos? Viver e sonhar costumam estar mesmo embaralhados em sua mente. “Uma parte dela pesa, pondera (às vezes), outra parte delira (sempre)”. (Adaptado de Ferreira Gullar.)
A misteriosa dama tem mais interrogações que respostas. Ela também não é muito de procurar respostas, basta-lhe viver e, afinal, “navegar é preciso, viver não é preciso”, conforma-se com um outro poeta.

Stenio, com a colaboração de Tafnes.
Setembro de 2008.