quarta-feira, 2 de julho de 2014

VIDA SEVERINA


ATUALMENTE TENHO O PÃO DE CADA DIA MAIS OU MENOS ASSEGURADO (SE O INSS NÃO FALIR...), MAS JÁ PASSEI ESSES PEQUENOS APERTOS.
COMO APARECERAM MAIS DOIS OU TRÊS SEGUIDORES NO BLOG, E TAMBÉM TEM HAVIDO MAIS VISITAS POR CAUSA DOS AMIGOS DA CAIXA, REENCONTRADOS, ESTOU POSTANDO, MESMO JÁ TENDO FEITO ISSO NO FACEBOOK.

Mais Encomenda

Na minha infância fiquei um período afastado de minha família, deve ter sido dos seis até os dez anos de idade, e neste tempo morei no interior, onde conseguia o feijão com farinha, o que, na casa da minha mãe, solteira, sem trabalho fixo e com um monte de filhos, era bem mais difícil.
Fui resgatado, quando nem mais queria, pelo irmão Cocão, na época ainda conhecido por José Chagas, e fui morar na Bela Vista, numa casa de quatro cômodos pra dez ou mais pessoas. Nós éramos em sete, porque dois casaram e um outro morava com parentes no interior mas para compensar estes minha mãe logo recebeu o sobrinho Aloisio, que foi para a Capital com o intuito de estudar, e quase sempre tínhamos junto um ou mais dos irmãos dela, e mais um agregado, o Cobra.
Como normalmente ninguém conseguia emprego, vivia aquele monte de homens dentro de casa, fazendo bagunça, jogando baralho escondido da mãe, ou bola no meio da rua, e nesta última hipótese tinha também que vigiar o ônibus pois o irmão mais velho batia nos outros, se os encontrasse jogando bola.
Um outro irmão, já adulto, também conseguiu algum serviço, além do Aloisio e o Cobra, e logo nós estávamos tomando o dinheiro deste último no batidim (ou relancim, espécie de jogo de baralho). O Aloisio, muito comportado, não jogava, mas mesmo assim o salário dele só dava pra pagar o colégio e o ônibus. Diz ele que jogava bola, mas devia ser no meu lado cego.
Diante de um panorama desses, a gente tinha algum divertimento sim, mas quase sempre era à custa da miséria de um ou de outro, pois era o que permeava o nosso dia a dia.
Minha mãe já trabalhava, mas como doméstica, e ainda de gente quase tão pobre quanto nós, recebia meio salário mínimo, ou menos. Assim, quase sempre tínhamos que vender o almoço para pagar o jantar e neste sufoco o Aloisio sofria mais que os outros, com os dois turnos de trabalho e a escola noturna. Minha mãe, tentando protegê-lo, fazia um prato e escondia, pra gente não comer, mas como na casa não tinha muitos esconderijos, e com tantos famintos procurando, invariavelmente, ele ficava sem. Um irmão mais sacana começou a deixar o prato coberto e vazio para Aloisio descobrir e não ter nada dentro. Depois de uns três dias caindo no truque, ele começou a levantar o prato para deduzir, pelo peso, se tinha comida ou não. O sacana logo viu que não tava tendo mais graça e passou a botar areia, para ficar pesado e rir mais ainda, quando o faminto sentisse o peso e achasse que tinha comida.
A casa era infestada de ratos e o mesmo irmão mais sacana, armava a ratoeira com a isca de goiaba, já que do queijo, claro, não tínhamos nem o cheiro. Tio Maneo, também muito espirituoso, desarmou a ratoeira com todo o barulho e ainda imitou o ruído do rato imprensado. Rapidamente o Antônio correu pro local falando: ande bichim, coma goiaba! Foi um sacana sacaneando o outro, e todos nós rindo.
Já adulto, certa vez fui em uma fazendola da qual fora coproprietário e vendi minha parte para o outro sócio. A esposa dele pediu para eu fazer um poema sobre a fazenda, e eu disse que ia pensar, mas estava decidido a não fazer porque eu só via ali, miséria, exploração do homem pelo homem, e até trabalho infantil, utilizado pelos pais dos menores. Ao chegar na cidade ela mostrou uma montanha e disse que era linda, e também pediu uma poesia. Eu olhei e o que vi foi uma favela subindo morro acima e também pensei: porra, eu não sou João Cabral (de Mello Neto), para transformar miséria em beleza. Depois de alguns dias acabei juntando os dois pedidos e atendi à pedinte, todavia não mandei para ela a encomenda, por motivos óbvios.
Desta vez também eu estava decidido a não escrever para não expor misérias, e quando iniciei pensei também em não mandar, mas como agora eu conheço mais o pidão e sei que aguenta: taí.
Como um prato cheio de areia, anexo, abaixo, o poema.



MODERNIDADE


Sol a pino, mulheres (ocidentais) de burca
Suando em bicas a colher abóboras.
Crianças dão sal ao gado, embalam verduras
Trabalho no campo: exaustivo, inglório, ilegal.

Um ninho de passarinhos, com fugas e cantos
Ao lado da casa “sede”, nem sequer é visto
Não há tempo para deleites, romantismos.
A sobrevivência é que lhes dita o dia a dia.

E o trabalho infantil, e a extorsão das mulheres
Vai parar na minha mesa, normalmente farta
E na de gente ainda mais exploradora.
Triste ser humano que seus escravos perpetua.

Os burros de carga coexistem com avançadas
Tecnologias, e estas que a bem poucos beneficia.
Bela musa me diz, como se pode escrever poesia?
Preciso que um bom médium me evoque

De Castro Alves o espírito pra escrever com alma
Sobre escravos modernos, que nem são africanos
E um encosto de João Cabral que me transmita
A fórmula mágica de dizer que a miséria é bela.

Mas a não muitos quilômetros, já na cidade grande
Mesmo que forçado, o povo pobre faz a poesia
Empurrado morro acima na bela montanha
Que desmorona em versos que à musa contraria.

E à noite, quando as luzes mais baixas e mais ricas
Sucumbem à imensidão de vaga-lumes
Me regozijo e, pra não dizer que não falei de flores
Vejo ao longe e bem alto uma via láctea. Belíssima!

Março, 2013



6 comentários:

  1. Eis aí a prova do seu talento fazer um poema tão lindo com lembranças não muito felizes da infância!
    Adorei e confesso estar gostando de tudo o que você tem postado.
    Ficarei no aguardo do próximo!
    Parabéns!

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    1. Será que estou equivocado ou Aguiar é uma mulher? Se não for fique feliz, pois pensa como uma, e elas pensam de uma forma completamente diferente de nós, homens. Tanto é verdade, que vez ou outra Chico Buarque é tachado de homo ou bissexual, pela linguagem e sensibilidade, mas o que sei mesmo que ele é, é gênio, ou no mínimo genial. Obrigado pelos elogios, eu não vinha postando mais, mas por este e outros, vou por algo, vez ou outra.

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  2. Hoje reli seu poema! Cada vez que leio gosto mais! Onde encontro mais escritos seus?
    Beijos

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  3. Respostas
    1. Escrevi, mas não sei se leu, pois não postei como resposta. Agora sim.

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  4. Credo, é você? Acertei a parte de ser mulher, o que muito me orgulha, mas de ser você eu nunca pensaria, até por causa da distração, a doceria, e também pelo sobrenome, que não usa no Face. Tenho uma outra página, no G+ "Textos de Amor e Humor" mas aviso que quase todos estão também no BLOG. No Yahoo Respostas também postei algumas coisas, estas mais diferentes, pois era outro público e outro objetivo mas se quiser ver o meu nick lá é "nadasei". No restante que compõe o livro, sim, tem bem mais coisas que eu não quis publicar, como dois textos que fiz da minha longa briga com a Caixa, que finalmente, venci. E você acertou em cheio, poesia é pra se ler mais de uma vez, os ansiosos, como eu, se dão melhor com a prosa. Veja no BLOG Misterio...SA, parece um pouco consigo, Um beijão.

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