terça-feira, 14 de abril de 2015

TRAUMAS

VEZ OU OUTRA A PSICÓLOGA COM A QUAL ME CONSULTO FALA QUE ESCREVER SOBRE ELES AJUDA NA TERAPIA. ENTÃO TAÍ, VOCÊS,LEITORES, SERÃO TAMBÉM MEUS CURADORES DA MENTE.


A Boneca Aleijada
Há poucos dias li uma crônica de Elizabeth Martins, em que ela fala de presentes ganhos na infância e guardados até a vida adulta, ou mesmo até a morte. Ela diz inicialmente que não se lembrava de nenhum, mas depois descobre que aos seis anos ganhou do pai uma coleção de livros. Eu me lembro de dois, ambos ganhos de professoras primárias; Um livro, também, e uma bola de borracha, mas só lembro o destino da bola porque, óbvio, furou e foi pro lixo. O Natal, que por coincidência também é a data do meu aniversário, nunca existiu na minha infância, apesar de a musiquinha infantil dizer que “seja rico, seja pobre, o velhinho sempre vem”. Na Bela Vista, bairro paupérrimo de Fortaleza, ele, se vinha, vinha disfarçado ou escondido, com medo de ser apedrejado pela grande maioria que não ganhava nada.
Já adulto li um livro, “O menino Descalço”, de Oswaldo Abraão, autor meu conhecido, que também teve uma infância assim, e, todos os anos, ele comprava presentes de Natal e doava a crianças carentes. Parabéns pra ele, porque da minha parte não tenho nenhum apreço pela data, continuo sem receber presentes (agora por opção), e, fora os presentes obrigatórios, para mãe, esposas (tive duas) ou filhos, só me lembro de ter dado um, através do “Papai Noel” Correios, e nem sei se pode ser chamado de “presente”, pois doei uma bolsa com material escolar.
Este preâmbulo todo foi só pra dizer que me emociono muito vendo uma criança sem brinquedos, ou que possui somente os que ela inventa ou faz, como eu, às vezes, fazia.
Hoje, sendo já aposentado, e não mais dirigindo, ando bastante a pé, e outro dia, em uma caminhada, vi uma boneca na calçada, e pensando nos que não tem nenhuma, fui lá e peguei o brinquedo. Achei que a boneca de pano estava apenas suja, mas depois descobri que lhe faltava um braço, além de ser toda desengonçada. Senti como se ela fosse uma criança pobre, filho feio (que não tem pai), e abandonada. Já não queria mais doar o brinquedo, seria meu, ainda que impróprio para maiores de 65 anos, e ainda, do sexo masculino. Eu queria que aquele brinquedo apagasse alguns dos traumas adquiridos por não ter quase nenhum na infância; e por falar em infância, além de trabalho, o que tive muito nela foram proibições e com todo este quadro é bem natural os mais de vinte anos de psicoterapia, que carrego nas costas e na cuca. Parece que vou ter mais muitas seções, pois se a psicóloga logo falou que eu escreveria este texto, minha bela nega, quase sempre paciente e compreensiva, me subtraiu o brinquedo, e me somou mais uma proibição. Megera! Ainda bem que pelo menos o trabalho, o outro dos meus três monstros da infância, não mais pratico.
P.S. Ainda da psicóloga, certa vez eu comentando sobre a capa do livro que escrevi, falei que uma mulher era poetisa e dava as costas para as maldades do mundo; enquanto a outra era a guerreira, mãe do mundo, e defendia sua prole com muito vigor físico e força mental, como o faz quase toda mãe. Ela me fez um baita elogio: disse que a soma das duas era eu! Agora eu fico pensando se a boneca aleijada não era também eu. O eu dos meus traumas de uma vida toda, pois não os tive só na infância. Amanhã vou lá, descarregar um ou mais deles nos ouvidos da minha bela ouvinte/conselheira.
Março de 2015.

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